Retomando a coluna de Contardo Calligaris (Folha de S. Paulo, 19/03/2009), ele conclui sua argumentação da seguinte forma (grifos meus):
"Na aurora da modernidade, Hegel escrevia que o desprendimento em encarar a morte de perto era a marca do mestre. Depois de dois séculos higienistas, que fizeram a apologia da sobrevivência a qualquer custo, nestas décadas em que arriscar a vida num esporte extremo é apenas um entretenimento televisivo, talvez, aos olhos de alguns, a verdadeira marca do mestre pareça ser o desprendimento em matar."
Voilà! Onde se lê ‘exporte extremo’ leia-se ‘automobilismo’, e este pequeno parágrafo fala mais sobre corridas do que todos os jornais e blogs especializados, meu inclusive, falaram nos últimos quatro meses.
A afirmação de Hegel encontra fundamento em inúmeras fontes, desde romances até costumes de tribos amazônicas. Os dois séculos higienistas, o colunista gentilmente me confirmou tratar-se de uma referência foucaultiana.
Calma gente, explico. O próprio termo ‘higiene’ parece ter sido criado nesses últimos 200 anos, ao menos no sentido que o usamos. Foi no fim do século XIX que Louis Pasteur descobriu a vida microscópica e passamos a lavar as mãos antes de comer. Mais que isso, só muito recentemente os hospitais foram divididos em alas, e os tuberculosos passaram a ser tratados muito longe dos amputados e assim por diante.
‘Higiene’ não se refere apenas à medicina. Podemos dizer que colocar corredores e grades nas masmorras, transformando-as em prisões, foi uma medida de higiene social. Há 200 anos as residências européias (e mais tarde as brasileiras) das classes baixas começaram a ganhar algo inovador: paredes internas; inventaram os cômodos, o quarto dos pais separado do quarto dos filhos, a cozinha separada dos quartos e uma sala de estar na entrada.
Higiene é algo bom? Depende. Hitler, para exterminar doentes, ciganos e judeus, não invadiram casas em plena luz do dia nem derramou sangue nas ruas (os otomanos, 20 anos antes, ainda impalavam inimigos). Ao invés disso, construíram campos de concentração e extermínio longe dos centros urbanos, com uma divisão racional do espaço e intrincados cálculos logísticos. Pode-se dizer que os nazistas foram higiênicos.
No entanto, em geral pode-se dizer que os procedimentos de ‘limpeza’ foram utilizados nos últimos anos sempre para preservar a vida. Na época de Hegel, era comum artistas pintarem os leitos de morte de figuras da sociedade. Como seriam estas pinturas hoje? Uma sala branca com uma cama verde clara com alguém cheio de tubos deitado com pessoas mascaradas em volta, talvez? Hoje se morre sozinho, longe de qualquer parente ou amigo.
Penso que é nesse contexto que devemos pensar que o esporte a motor surgiu. Num mundo cada vez mais asséptico, mais seguro, é certamente mais difícil perceber que estamos vivos. Ao mínimo avanço tecnológico, portanto, foi natural que indivíduos se sentissem dispostos a disputar corridas, e mais natural ainda que muita gente se dispusesse a assisti-las - vale lembrar que o automobilismo e o cinema foram criados na mesma época.
Não acho necessário ressaltar como o automobilismo foi um esporte perigoso durante 60 anos. O fato é que ele passou a ficar mais seguro. Pode haver controvérsias quanto aos fatores que operaram essa mudança, porém há um dado inegável: a escalada da segurança na Fórmula 1(único protótipo possível do automobilismo como um todo) coincidiu com a chegada da televisão. A diferença entre a Fórmula 1 dos anos 60 e a dos anos 80 era que, na primeira década, ela era um entretenimento. Na outra, era um entretenimento televisivo.
Isso vai contra o que diz Calligaris? De forma alguma. Apesar de a morte ter sido quase banida da Fórmula 1, ela ainda permaneceu por um bom tempo como possibilidade. É discutível se essa possibilidade tem subsistido nos últimos 15 anos. Mas não fosse a morte, existiria diferença entre acordar domingo de manhã para assistir a uma corrida de carros ou a uma maratona?
A conclusão desse raciocínio não poderia ser mais cruel. Se Calligaris diz que o projeto de civilização moderna subtrai o senso de existência e identidade do indivíduo, então devemos nos questionar: será que é para isso que foi criado o automobilismo, para que nos devolva a noção de morte? O automobilismo sem morte serve para quê, então?
Não é a toa que o regulamento da Fórmula 1 se torna mais confuso e questionável a cada ano. Ecclestone e Mosley, assim como nós, estão completamente perdidos no mundo atual. E ninguém sabe que respostas dar às perguntas acima.
Thursday, March 26, 2009
Subscribe to:
Post Comments (Atom)
0 comments:
Post a Comment