Naturalmente, quando os cartolas da FOM se reúnem para montar um calendário, jamais pensam em efemérides ou simbolismos. Mas o acaso é um deus brincalhão: no fim de semana retrasado, a Fórmula 1 estava em Montreal para o GP do Canadá e, no próximo, estará na Espanha para a corrida europeia.
De forma que hoje, no intervalo entre as duas etapas, completam-se trinta anos da última vitória do canadense Gilles Villeneuve, obtida em um GP da Espanha.
Gilles é um piloto cuja compreensão escapa aos números. Apenas seis vitórias; pouco, mesmo em se tratando de um piloto com apenas 66 GPs disputados na carreira. E, no entanto, tem seu rosto e seu capacete estampados em uma infinidade de bandeiras da Ferrari e é lembrado por uma legião de fãs, mesmo aqueles que não nasceram a tempo de vê-lo correr.
De suas já mencionadas seis vitórias, muitas delas passam batido até pelos mais letrados no esporte. Por exemplo, seu êxito no GP dos Estados Unidos Leste de 1979 raramente é recordado, apesar de Villeneuve tê-lo conquistado de forma brilhante, na pista perigosamente molhada de Watkins Glen.
Por outro lado, sua derradeira conquista, em Jarama, em 81, é talvez a sua mais famosa. A lembrança talvez se dê pelo fato de o canadense ter resistido, quase a prova inteira, ao ataque de Jacques Laffite (atrás de sua Ferrari na foto acima). Além do francês, a fila que formou atrás de si incluía John Watson, Carlos Reutemann e Elio de Angelis - os cinco primeiros cruzaram a linha de chegada com menos de dois segundos de diferença.
Gilles ganhou porque, mesmo quando seus pneus de degradaram, não desistiu de lutar - traço forte em seu caráter. Mesmo quando todas as regras de conduta, ou mesmo as leis da física recomendavam ceder a posição ou uma parte do traçado, ele não cedia. Tocava e batia rotineiramente, mas sua forma de conduzir era mais do que chegar na frente: era uma forma de se colocar no mundo, uma posição ideológica, um modo de dizer como um piloto deveria ser.
Isso atraía muita simpatia por parte dos espectadores, bem como desavenças com colegas e outros observadores. Um deles era o jornalista Gérard Crombac (1929-2005).
Antes de prosseguir, é melhor dizer que Crombac não era apenas um jornalista especializado. O suíço, que cobriu mais de 500 GPs em sua vida, esteve na Fórmula 1 desde a primeira temporada. Foi mecânico de Raymond Sommer. Apertou a mão de Nuvolari quando criança. Dividiu um apartamento com Jim Clark. Foi representante da França na comissão técnica da FISA, de forma que muitos artigos do regulamento até hoje em vigor foram escritos por ele. Foi editor-chefe da Sport-Auto por mais de duas décadas.
Jabby, como era conhecido no paddock, onde era uma das vozes mais influentes, comentou certa vez sobre Gilles: "Pessoalmente eu era bastante amistoso com ele, mas não o apreciava porque achava que ele não estava tendo respeito suficiente pelos carros. Soube histórias terríveis a respeito dele quando tinha uma Ferrari GTB emprestada ou não importa o que fosse na época, e ele se divertia dando voltas e voltas na praça em frente á sua casa, só por brincadeira. E quando continuou a correr em Zandvoort tendo perdido uma roda... Achei que isso foi desnecessário e revelou um aspecto: Villeneuve não era um entusiasta por carros".
Não se pode negar certa razão a Crombac. O jornalista entendia, supõe-se, a relação homem-carro como uma extensão da milenar relação homem-cavalo - que precisa de confiança mútua, respeito e senso de liderança para dar certo.
Acontece que Villeneuve não era um atleta helênico, tampouco um cavalerio medieval ou um cowboy do Velho Oeste. Era, isso sim, um automobilista, e o automobilismo nada mais é do que um desdobramento da relação homem-máquina - a relação que diferencia o homem moderno, como eu ou você, de todos os outros. Desde os últimos 200 anos, somos obrigados a conviver com criaturas muito estranhas ao nosso redor, chamadas máquinas, que são muito diferentes dos animais, como os cavalos, com os quais disputávamos corridas e íamos à guerra antes disso.
As máquinas podem nos levar mais longe e mais rápido, mas não podemos estabelecer relações afetivas com elas. Temos que entendê-las, caso contrário elas podem nos matar. Ainda assim, jamais podemos depositar integralmente nossa confiança nelas. É nesse equilíbrio delicado que surgem as corridas de automóvel.
Num determinado estágio de evolução de tais corridas, aparece um certo canadense, de pouca estatura e habilidade impressionante. Sua escolha, mais radical que a dos colegas, é a de não fazer concessões à máquina que pilota (ironicamente, uma Ferrari, a mais cultuada das máquinas). Não poupa pneus, faz pouco caso dos freios, não hesita em amassar a lataria. Supera, ou tenta superar qualquer avaria no braço. Não é incomum vê-lo saindo da pista. De vez em quando, vence. O cavalo mais bravio (e era um cavalo rompante) não lhe causava medo. Coincidência ou não, foi num desses que morreu. Enquanto vivo, porém, se recusou a abdicar de sua soberania.
Tuesday, June 21, 2011
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