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Monday, November 9, 2009

Através do Muro de Berlim

Na noite do dia 9 de novembro de 1989, uma cidade dividida em duas se reencontrava pela primeira vez após 28 anos. Após protestos que chegaram a levar até um milhão de pessoas às ruas, o governo da DDR (RDA em português, conhecida como Alemanha Oriental) decidiu recuar e arrefecer o controle na fronteira com a Berlim Ocidental. Um anúncio confuso na televisão, no entanto, fez a população se deslocar em massa em direção ao muro, pegando a guarda de surpresa e forçando as autoridades a liberarem a passagem.

Hoje, exatamente, vinte anos depois, o mundo mudou a ponto de nos parecer até inverossímeis o mundo unipartidário daquele Leste Europeu e as relações que este mantinha com o Ocidente. Muitas destas relações passaram pelo automobilismo e observá-las, hoje, é a forma que encontro de prestar contas à história.

Hungaroring e AVUS
O movimento de protestos que culminou na derrubada do muro, e posteriormente na reunificação alemã, começou quando, em 23 de agosto daquele ano, a Hungria decidiu abrir sua fronteira com a Áustria, detonando assim um processo de imigração de cidadãos da RDA por aquela rota. Após duas décadas, notamos que a Hungria era o lugar mais provável para o rompimento do dique, visto o desprezo com que os magiares sempre trataram o
Pacto de Varsóvia (algumas vezes com funestas consequências, vide a marcha de tanques soviéticos por Budapeste em 1956).

Também não nos espanta, portanto, que a Hungria tenha aceitado de prontidão realizar um
GP de Fórmula 1 já em 1986 – na época, o país já manifestava sua vontade de participar da roda gigante do capitalismo. Foi construída Hungaroring, uma pista na medida exata para as câmeras de tv ocidentais.

Não foi a primeira vez, porém, que os cidadãos do Leste puderam ver os carros da Fórmula 1 com seus próprios olhos. Em 1959, o campeonato mundial abandonou temporariamente Nürburgring para disputar o GP da Alemanha (note, o GP nunca se chamou “GP da Alemanha Ocidental”, este dado será valioso mais à frente) em AVUS, próximo a Berlim. Na época, não havia o Muro dividindo a cidade, que seria erguido dois anos depois – de fato, após a Guerra a extremidade Sul do circuito foi cortada, pois chegava muito perto do setor soviético.

Curiosamente, a curva Norte de AVUS, inclinada (foto), era frequentemente chamada de “muro da morte”.

Tal feito obtido pela Fórmula 1, de atravessar a Cortina de Ferro, é no entanto risível perto da facilidade com que as motos costumavam correr do outro lado do bloco.

O comunismo e as duas rodas
Há uma explicação racional para isso: no Bloco socialista, era mais fácil obter uma moto para o transporte individual do que um carro. Além disso, havia locais tradicionais para corridas de duas rodas.

A Ioguslávia, por exemplo, recebeu o campeonato mundial de motociclismo de 1968 a 1990, a princípio em Opatija e depois em Rijeka (atualmente as duas cidades fazem parte da Croácia).

Milan Kundera
Mas uma das etapas mais fascinantes do Leste foi a da Tchecoslováquia, disputada em Brno (foto acima). Hoje a cidade dispõe de um autódromo permanente onde a MotoGP corre a etapa da República Tcheca (Tchecoslováquia, entre 1987 e 1993). Porém, as estradas próximas à capital da Morávia serviram como pista para carros e motos desde os tempos de
Masaryk.

A grande mobilização popular para assistir Giacomo Agostini (foto), Mike Hailwood, Phil Read e outros pelas estradas tchecas nos anos 60 mereceu, inclusive, uma menção literária. Foi no romance de estreia do celebrado autor Milan Kundera, intitulado “A brincadeira” (leitura recomendável). No livro, o personagem Jaroslav é um habitante do interior da Morávia muito ligado às tradições da região – principalmente à música – que tenta legar seu conhecimento ao filho. Este, no entanto, prefere ir com os amigos “assistir às corridas de moto em Brno”, simbolizando o colapso de uma identidade regional.

Grosser Preis von Deutschland
Mas as motos foram além, não se limitando apenas aos Estados-satélite do Bloco, como mantendo também, por doze temporadas, um GP da própria Alemanha Oriental (acima, Agostini).

Tudo começa antes da Segunda Guerra, quando as provas de motocicleta mais importantes da Alemanha encontram uma sede estável: algumas estradas no entorno da vila de Hohenstein-Ernstthal, passando inclusive dentro desta. Mais tarde, em 1937, a pista ganhou o nome da região em que se localizava, a Saxônia –
Sachsenring, portanto.

(Hoje as motos continuam a correr na cidade de Hohenstein-Ernstthal, numa pista chamada Sachsenring. Mas a atual foi construída nos anos 1990, após a reunificação, e é obviamente uma versão menor e mais travada que a original).

Após a divisão do país, a Saxônia foi alocada no bloco comunista, na RDA. A princípio, nem ela nem a RFA poderiam inscrever pilotos ou etapas no mundial da
FIM, mas esta última rompeu a proibição primeiro, devido a um ciclo de desenvolvimento da indústria (especialmente com a DKW e NSU) e o interesse popular nos anos 1950. A partir daí o GP da Alemanha foi sempre promovido na porção Ocidental, algumas vezes na popular Solitude, na nem tanto Hockenheim ou às moscas em Nürburgring.

Grosser Preis der DDR
Na década seguinte um fugaz brilho da indústria de motos da RDA (a fabricante MZ obteve notório avanço nos motores de dois tempos) animou o Partido a organizar uma prova, como propaganda para o Ocidente. E assim a antiga Sachsenring voltou aos seus dias mais gloriosos, agora como palco do GP da RDA.

Ela compôs o campeonato mundial entre 1961 e 1972. Como é possível notar na imagem acima, a presença dos espectadores era maciça. Ironicamente, eles próprios desempenharam um papel fundamental para que a corrida acabasse.

A história ocorreu em 1971 (abaixo, a largada da prova 350cc, naquele ano), ao fim da corrida das 250cc. O vencedor foi Dieter Braun, piloto alemão – da Alemanha Ocidental. A convenção esportiva manda que o hino do primeiro colocado seja entoado, o que de fato aconteceu. Mas a torcida presente não se limitou apenas a respeitar, como cantou em coro, a plenos pulmões, o Deutschlandlied.

As autoridades socialistas, ridicularizadas, reagiram de imediato. No ano seguinte, a fim de evitar problemas semelhantes, restringiram a participação no GP a ‘pilotos convidados’. E de 1973 em diante, apenas cidadãos do Bloco socialista poderiam se inscrever, o que acarretou o fim de GPs da RDA no campeonato mundial.

Nada mais prosaico. Nada mais característico do século XX.


Thursday, July 31, 2008

Capitalismo e Hungaroring


A piada já foi reproduzida pelo Ico em uma coluna no GP Total, retirada do Red Bulletin. Um médico diz ao paciente que ele tem apenas três meses de vida. Atônito, o paciente pergunta ao médico o que deve fazer. “Você pode ir a um GP da Hungria”, responde. “Isso vai me curar, doutor?”, replica o paciente. “Não, mas uma corrida lá, parece que leva anos para terminar...”.

Esta é a visão que o mundo das corridas tem da Hungria: o paradigma da monotonia, realizado todos os anos basicamente porque Bernie Ecclestone ganha muito dinheiro com ele. Além disso, é a corrida “de casa” de finlandeses, poloneses e, de vez em quando, austríacos.

Mas nem sempre foi assim. Dizem que tudo começa no início dos anos 80, quando Ecclestone inicia projetos ambiciosos: fazer uma corrida em Nova York e outra em Moscou. A etapa no centro do capitalismo foi mudada para Dallas, que só foi realizada uma vez. Já a corrida do Leste recaiu sobre Budapeste, a partir de 1986 (ainda uma economia fechada, portanto), cidade que fazia 30 anos que fora invadida por tanques soviéticos e nunca foi totalmente simpática às diretrizes moscovitas. E ela está até hoje no calendário...

Como palco, foi construída Hungaroring, não muito bem projetada para grandes emoções, mas na medida certa para as câmeras de tv e, mais importante, lento e envolto em brita, seria preciso fazer muita força para alguém morrer ali – um luxo, na época.

Além disso, seria a primeira vez que a Fórmula 1 cruzaria a Cortina de Ferro (convenhamos, as motos iam e vinham constantemente...). A equipe alemã Zakspeed, patrocinada pelos cigarros West – os mesmos das McLaren, de 1997 a 2005 -, sempre pintava um de seus carros com East (“Leste”) ao correr na Hungria e na Alemanha Ocidental (Hockenheim).

Nos primeiros anos de Hungria, podia-se chamar as corridas de muita coisa, menos de ‘monótonas’. Teve aquela ultrapassagem surreal de Piquet em Senna em 1986, briga ininterrupta pela ponta em 1988, com o vencedor chegando a metros do segundo colocado, Mansell vitorioso depois de partir do décimo segundo lugar em 1989...

Em 1990, a Zakspeed deixou de existir. Nem a piadinha com o East e West seria possível, já que o bloco comunista começava a ruir. Como o Muro...

Desde então, grandes pegas no Leste viraram artigos de luxo. Ok, tivemos Damon Hill liderando com uma Arrows até uma volta antes do fim, a primeira vitória do Alonso e uma corrida maluca na única vez que choveu, em 2006. Mas, em geral, sempre são duas horas tão modorrentas quanto o calor que faz às margens do Danúbio.E até os mais ferrenhos neoliberais hão de concordar que o GP da Hungria era melhor na época dos Trabants, dos Ladas e da Vita Cola.

Qual seria a solução? O retorno bolchevique? Não iria tão longe. Para mim, bastaria riscar a Hungria do calendário, pois seu charme era estar do outro lado, ser transgressora. Desde a queda do muro, ela é só mais um ponto no mapa, cujo passado de conquistas nos automóveis está enterrado. Mas Bernie Ecclestone ganha muito dinheiro com ela...