Thursday, May 28, 2009

O cigarro de Hunt ou o homem pendurado

Se alguém se deparou com o Blog do Ico recentemente deve ter visto o vídeo de James Hunt fumando enquanto era entrevistado ao fim do GP da Grã-Bretanha de 1976.

É estranho hoje vermos um piloto, esportista, ícone da vida saudável, com dieta balanceada e fumando. E no entanto, Hunt não era um caso isolado. Dizem que Keke Rosberg comemorou seu título em 82 também acendendo cigarros e cigarros em pleno pódio.

Não se sabia, na época, que fumar causava câncer e uma série de outras doenças? Sim, já sabiam. E por que o cigarro continuava presente no paddock?

Em primeiro lugar, porque o automobilismo na época era mais ou menos algo como dar voltas a 200km/h de média em uma banheira de gasolina. Pilotos não corriam porque fazia bem à saúde, mas porque era legal, apesar de perigoso, ou justamente por isso.

Mas essa ainda me parece uma resposta incompleta. Acredito que os pilotos dos anos 70 estão inseridos num contexto muito mais amplo. Para ficar mais claro o que estou falando, coloco a seguir quatro artistas que começaram a desenvolver seu trabalho nos anos 70.



Sterlac: Pendurou-se por cabos eu perfuravam sua própria pele em um museu durante alguns minutos, em 1978. recentemente, implantou uma orelha em seu braço.

Denis Oppenheimer: Uma de suas principais obras é “Posição de leitura para queimadura de segundo grau” (1970), na qual passou horas deitado em uma praia californiana sob o sol, protegendo o tronco apenas com um livro.


Gina Panne: Artista plástica italiana que se notabilizou por registrar cenas de automutilação e cortes violentos em torno de seu corpo.

Chris Burden: Alguns de seus feitos incluem ter levado um tiro no braço disparado a uma distância de cinco metros por um amigo, em 1971. Três anos depois, crucificou-se com pregos na traseira de um Fusca que deu algumas voltas no quarteirão. Já ficou trancado cinco dias num armário, entre outras performances.

Que diversos artistas surgissem ao mesmo tempo com propostas tão violentas não poderia ser casual. Eles fazem parte de um movimento chamado Body Art, que parte do princípio de que nós temos liberdade plena sobre nosso próprio corpo, mas que os modos de organização social o sequestra e o utiliza para trabalhar em função do capitalismo (ou do socialismo de Estado, na URSS, que seja).

Não por coincidência, em 1975 o filósofo francês Michel Foucault publica o livro Vigiar e punir. Um dos capítulos se chama Os corpos dóceis, e traça a história de como procedimentos militares de disciplina foram integrados aos hospitais e às escolas.

Interessante notar que quase todos os artistas da Body Art mudaram sua orientação a partir dos anos 80, incluindo Chris Burden e Gina Pane. Por que o movimento perdeu tantos expoentes tão repentinamente? Difícil apontar uma certeza, mas a Aids certamente ajudou a abalar a crença da liberdade plena do corpo.

Mas o mais importante aqui é o declínio deste movimento ter acontecido ao mesmo tempo em que as mortes na Fórmula 1 diminuíram drasticamente. Até os anos 70, não só os cuidados com a integridade física dos pilotos não eram muito observados, como ser piloto era um ato de rebeldia, uma forma de libertação da alienação do trabalho. Nas décadas seguintes, porém, a disciplina forçou seu caminho para entrar na Fórmula 1. Mas não entrou assim, tão bruscamente: os logotipos do cigarro ainda adornavam as latarias dos carros até poucos anos atrás.



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