Saturday, May 30, 2009
A indústria do tabaco – e a Indústria Cultural
O assunto post anterior suscitou uma boa discussão nos comentários e se abre para uma série de outras questões. Uma delas: o que tem teria de tão errado James Hunt fumar no pódio, se o carro dele era patrocinado pela Marlboro? Resposta: nada de errado.
Mas quando Kimi Raikkonen é flagrado na noite, durante a pré-temporada, com um cigarro na mão, ele vira a primeira página dos tabloides ingleses. Pior ainda: seu carro é patrocinado pela mesma Marlboro.
Já vimos que Raikkonen é piloto de uma época em que as mortes no automobilismo não são frequentes nem toleráveis, e que o corpo do piloto segue uma disciplina rígida para se manter em forma. Já Hunt é de uma época em que sentar em um carro de corrida é, conscientemente ou não, se recusar a entregar o corpo a uma disciplina que o coloque para trabalhar em função do capitalismo ou qualquer outro grande sistema de poder.
Também nos anos 60 e 70, época em que já se sabia os males advindos do cigarro, fumar era um pouco como sentar em um carro de corrida, na visão de alguns. A lógica do pensamento era que o Estado (capitalista, burguês) não queria que seus cidadãos fumassem, pois um fumante daria muito mais despesa ao sistema de saúde, ao mesmo tempo em que sua produtividade seria muito menor.
Logo, fumar seria uma forma e combater o poder do Estado (logo, o poder do capital e da burguesia). Até hoje ainda se pensa da mesma forma em algumas regiões, a começar pela França. Fumando, nos libertamos da opressão sofrida por nosso corpo.
Não por acaso a indústria do tabaco formou uma parceria tão forte com o automobilismo. Já falei sobre isso em outro post, mas vale a pena retomar.
As tabagistas se interessaram pela Fórmula 1 (e o automobilismo) porque era uma forma de driblar as restrições impostas à propaganda de cigarro na Europa desde o fim dos anos 60. Mas por que a Fórmula 1 se interessou pelas tabagistas?
Sabemos que Colin Chapman foi o primeiro a estampar um patrocínio não-vinculado a automobilismo em seus carros, em 1968. Por que ele precisaria desse dinheiro? Aí vai a minha hipótese: para a pesquisa em aerodinâmica. No mesmo ano de 68 os aerofólios apareceram nos carros. Em 1972, a Lotus apresenta seu primeiro bólido em formato de cunha. Na mesma época, a Brabham começa a pensar no embrião do efeito-solo. Ok, a Brabham não era patrocinada em 72. Nos anos seguintes, ela se associa à Martini.
Os pilotos eram garotos-propaganda ideais para o cigarro (principalmente ele, embora também para bebidas e outros) pelos motivos já colocados: arriscavam a vida, não submetiam seu corpo à lógica do trabalho. Mas será que não há nada de errado nessa história?
Afinal, por mais que não houvesse nada de errado em ser fumante e piloto de alto nível ao mesmo tempo, a empresa tabagista não ganha dinheiro vendendo cigarros para pilotos, mas sim para as pessoas comuns, como eu ou você, que trabalham durante a semana. O que faz essa pessoa ligar a tv para assistir à Formula 1 no domingo?
Um filósofo chamado Theodor Adorno, que morreu em 69, dedicou sua vida a responder a essa pergunta (claro, tendo outras balizas que não a tv e não a Fórmula 1). Ele formularia a resposta da seguinte forma: o cidadão comum liga a tv para ver pilotos correndo, ou seja, pessoas livres da disciplina imposta ao corpo, porque ele não pode fazer a mesma coisa. Ele não pode ser livre, por isso se contenta que outros sejam livres no lugar dele. Ele troca seu prazer real pelo prazer voyeur. A Fórmula 1 (e não só ela), portanto, é a válvula da panela de pressão que é a vida do espectador: sem ela, o espectador iria lutar para conquistar sua própria liberdade, ao invés de se contentar com a liberdade dos outros.
E o piloto, como fica nessa história? Ele é o símbolo da liberdade ou o mais perverso agente da opressão?
Não é preciso dizer que este não é um debate encerrado. Ao mesmo tempo em que a questão da liberdade do corpo perdia força, o mesmo acontecia com as teorias de Adorno. E a Fórmula 1 via cada vez menos mortes. Adorno termina sua teoria dizendo que o sistema, que ele chama de Indústria Cultural, sequestra os momentos de lazer do indivíduo e os transforma numa imitação amigável do trabalho.
Nada mais natural, portanto, que os pilotos, de bon vivants nos anos 70, sejam hoje compenetrados workaholics.
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