As questões adormecidas que o acidente do brasileiro traz à tona
Nenhuma foto do acidente foi mais impressionante que a creditada a Tamas Kovacs e á AP. Um close de Felipe Massa, de frente, ainda de capacete, o olho direito arregalado e fixo, o esquerdo fechado, inchado e seu supercílio aberto. O parafuso que prende a viseira ao casco do lado esquerdo quebrado.
A princípio, o azar de Massa foi o norte dos comentários, de estar no lugar errado na hora errada. Mais tarde, ressaltou-se a sorte: tivesse a peça batido dois centímetros à direita, e sua carreia de piloto estaria terminada. Afinal, como o parafuso da viseira, feito para resistir a tudo, pôde se soltar com tal facilidade?
“No meu acidente, mesmo com o forte impacto frontal contra a barreira de pneus, a viseira se manteve no lugar” – Luciano Burti
Luciano Burti acendeu a polêmica ao fazer declarações sobre seu acidente no GP da Bélgica em 2001 à Autosport, divulgando também imagens do que sobrou de seu capacete após o impacto contra o muro da Blanchimont. Da queixeira de seu casco, nem os restos. Mas sua viseira permaneceu firme, mesmo após um impacto a uma maior velocidade - embora os dois acidentes tenham naturezas diferentes e a comparação não seja talvez legítima.
"Vendo as fotos do meu capacete, podemos notar que se fosse feito de fibra de carbono, como o são hoje, o dano seria menor", declarou à revista britânica o piloto e atual comentarista da Fórmula 1. "Mas podemos ver no meu capacete que , mesmo com o forte impacto frontal contra a barreira de pneus, a viseira se manteve no lugar, pois era fixada com quatro parafusos, ao contrário da maioria deles, que possui apenas dois (para a redução do peso)".
A resistência da viseira dos capacetes passou a ser pensada após o acidente que encerrou a carreira de Hemult Marko, em 1972. Muitos pedriscos se acumulavam no entorno do traçado de Clermont-Ferrand durante o GP da França. Os carros que se despistavam traziam elas para o asfalto, uma das quais foi atirada para o olho do promissor austríaco, cegando um de seus olhos instantaneamente. Desde então, alardeiam os fabricantes, tais viseiras podem resistir a tiros de revólver.
Burti sublinhou à Autosport que seu comentário não é uma crítica à Schubert, fabricante dos capacetes de Massa, ou à FIA, mas uma indicação de um aspecto onde a segurança deve melhorar.
Certamente não foi descaso do fabricante nem do órgão regulador. A segurança é tratada ostensivamente na Fórmula 1 desde 1978, quando Sid Watkins assumiu o cargo de "consultor cirúrgico" oficial (coincidentemente, este também foi o ano de Bernie Ecclestone à frente da FOCA - atualizado), ainda de forma precária. Os acidentes fatais de 1982 motivaram uma preocupação mais séria com a questão - pistas mais seguras e crash tests obrigatórios a partir de 1985. Tudo o que havia sido feito antes, no entanto, pareceu amador em relação às políticas implantadas em 1994.
Os acidentes e mortes daquele ano motivaram o que talvez tenha sido a obra mais importante da gestão Mosley na FIA: o EASC. "Expert Advisory Safety Comitee", ou Comitê Consultivo de Experts em Segurança, um órgão responsável por estudar e implementar todas as medidas de segurança no automobilismo. Uma de suas primeiras medidas, por exemplo, foi banir da Fórmula 1 toda e qualquer curva percorrida a mais de 250 km/h - ao menos até o surgimento de áreas de escape de asfalto poroso.
“Se alguém morresse, a grande questão seria: a Fórmula 1 deveria continuar?" - Gérard Saillant
O resultado é que os esforços de segurança, desde então, não há mais grandes possibilidades de minimizar os riscos. Gérard Saillant, um dos médicos que acompanhou a recuperação de Felipe Massa e delegado da FIA, colocou a questão nos seguintes termos, em matéria da F1 Racing de fevereiro de 2009: "Pense em uma prova de 100m rasos. O trabalho de Jackie (Stewart) nos trouxe de 14s para 12s. O de Sid (Watkins), de 12s para 10s. Agora, trazer para 9,8 ou 9,7 não é nada comparativamente a eles - mas exigirá um esforço tão grande quanto".
Aí está o grande problema na Fórmula 1 atual. Como o acidente de Massa evidencia, o risco nunca será completamente zerado. Segue Saillant: "Mas se alguém morresse, a grande questão seria: a Fórmula 1 deveria continuar?"
Em outras palavras, os paramédicos de Hungaroring não apenas resgataram Felipe Massa de seu carro. Resgataram também a própria categoria de um forte questionamento social. Na época de Clark e Stewart, o automobilismo era um espaço onde o risco de vida não estava apenas inserido, como também instalado socialmente lá. Morrer fazia parte do jogo. A apropriação midiática do esporte se incumbiu de não fazer disso uma rotina. Os acidentes de Senna e Ratzenberger inauguraram uma nova era na Fórmula 1: uma era em que promotores de eventos, patrocinadores e megacorporações não estão interessados em associar suas marcas e investir dinheiro numa arena sangrenta, que transmita ao vivo em cadeia mundial uma morte que seja. Mas ela virá um dia. Não há como dizer que correr a 300 km/h em uma tonelada de metal com gasolina será algum dia um procedimento asséptico - e se fosse, ninguém assistiria. Insistir obsessivamente em segurança foi a salvação do automobilismo mundial. E será também sua última contradição.
Nenhuma foto do acidente foi mais impressionante que a creditada a Tamas Kovacs e á AP. Um close de Felipe Massa, de frente, ainda de capacete, o olho direito arregalado e fixo, o esquerdo fechado, inchado e seu supercílio aberto. O parafuso que prende a viseira ao casco do lado esquerdo quebrado.
A princípio, o azar de Massa foi o norte dos comentários, de estar no lugar errado na hora errada. Mais tarde, ressaltou-se a sorte: tivesse a peça batido dois centímetros à direita, e sua carreia de piloto estaria terminada. Afinal, como o parafuso da viseira, feito para resistir a tudo, pôde se soltar com tal facilidade?
“No meu acidente, mesmo com o forte impacto frontal contra a barreira de pneus, a viseira se manteve no lugar” – Luciano Burti
Luciano Burti acendeu a polêmica ao fazer declarações sobre seu acidente no GP da Bélgica em 2001 à Autosport, divulgando também imagens do que sobrou de seu capacete após o impacto contra o muro da Blanchimont. Da queixeira de seu casco, nem os restos. Mas sua viseira permaneceu firme, mesmo após um impacto a uma maior velocidade - embora os dois acidentes tenham naturezas diferentes e a comparação não seja talvez legítima.
"Vendo as fotos do meu capacete, podemos notar que se fosse feito de fibra de carbono, como o são hoje, o dano seria menor", declarou à revista britânica o piloto e atual comentarista da Fórmula 1. "Mas podemos ver no meu capacete que , mesmo com o forte impacto frontal contra a barreira de pneus, a viseira se manteve no lugar, pois era fixada com quatro parafusos, ao contrário da maioria deles, que possui apenas dois (para a redução do peso)".
A resistência da viseira dos capacetes passou a ser pensada após o acidente que encerrou a carreira de Hemult Marko, em 1972. Muitos pedriscos se acumulavam no entorno do traçado de Clermont-Ferrand durante o GP da França. Os carros que se despistavam traziam elas para o asfalto, uma das quais foi atirada para o olho do promissor austríaco, cegando um de seus olhos instantaneamente. Desde então, alardeiam os fabricantes, tais viseiras podem resistir a tiros de revólver.
Burti sublinhou à Autosport que seu comentário não é uma crítica à Schubert, fabricante dos capacetes de Massa, ou à FIA, mas uma indicação de um aspecto onde a segurança deve melhorar.
Certamente não foi descaso do fabricante nem do órgão regulador. A segurança é tratada ostensivamente na Fórmula 1 desde 1978, quando Sid Watkins assumiu o cargo de "consultor cirúrgico" oficial (coincidentemente, este também foi o ano de Bernie Ecclestone à frente da FOCA - atualizado), ainda de forma precária. Os acidentes fatais de 1982 motivaram uma preocupação mais séria com a questão - pistas mais seguras e crash tests obrigatórios a partir de 1985. Tudo o que havia sido feito antes, no entanto, pareceu amador em relação às políticas implantadas em 1994.
Os acidentes e mortes daquele ano motivaram o que talvez tenha sido a obra mais importante da gestão Mosley na FIA: o EASC. "Expert Advisory Safety Comitee", ou Comitê Consultivo de Experts em Segurança, um órgão responsável por estudar e implementar todas as medidas de segurança no automobilismo. Uma de suas primeiras medidas, por exemplo, foi banir da Fórmula 1 toda e qualquer curva percorrida a mais de 250 km/h - ao menos até o surgimento de áreas de escape de asfalto poroso.
“Se alguém morresse, a grande questão seria: a Fórmula 1 deveria continuar?" - Gérard Saillant
O resultado é que os esforços de segurança, desde então, não há mais grandes possibilidades de minimizar os riscos. Gérard Saillant, um dos médicos que acompanhou a recuperação de Felipe Massa e delegado da FIA, colocou a questão nos seguintes termos, em matéria da F1 Racing de fevereiro de 2009: "Pense em uma prova de 100m rasos. O trabalho de Jackie (Stewart) nos trouxe de 14s para 12s. O de Sid (Watkins), de 12s para 10s. Agora, trazer para 9,8 ou 9,7 não é nada comparativamente a eles - mas exigirá um esforço tão grande quanto".
Aí está o grande problema na Fórmula 1 atual. Como o acidente de Massa evidencia, o risco nunca será completamente zerado. Segue Saillant: "Mas se alguém morresse, a grande questão seria: a Fórmula 1 deveria continuar?"
Em outras palavras, os paramédicos de Hungaroring não apenas resgataram Felipe Massa de seu carro. Resgataram também a própria categoria de um forte questionamento social. Na época de Clark e Stewart, o automobilismo era um espaço onde o risco de vida não estava apenas inserido, como também instalado socialmente lá. Morrer fazia parte do jogo. A apropriação midiática do esporte se incumbiu de não fazer disso uma rotina. Os acidentes de Senna e Ratzenberger inauguraram uma nova era na Fórmula 1: uma era em que promotores de eventos, patrocinadores e megacorporações não estão interessados em associar suas marcas e investir dinheiro numa arena sangrenta, que transmita ao vivo em cadeia mundial uma morte que seja. Mas ela virá um dia. Não há como dizer que correr a 300 km/h em uma tonelada de metal com gasolina será algum dia um procedimento asséptico - e se fosse, ninguém assistiria. Insistir obsessivamente em segurança foi a salvação do automobilismo mundial. E será também sua última contradição.
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