Wednesday, November 25, 2009

Memórias póstumas de Colin Chapman

O retorno da equipe Lotus é mais um capítulo da Fórmula 1 escrito com a pena da galhofa e a tinta da melancolia

O retorno do nome “Lotus” aos grids da Fórmula 1, a partir do ano que vem, já é um assunto pisado e repisado, repercutido à exaustão de jornais a mesas de boteco. Passado tanto tempo após o burburinho (que certamente será ressuscitado) que a notícia causou, talvez alguns pontos que merecem reflexão tenham permanecido intocados.

A história da Lotus tinha, antes de toda polêmica, um fim preciso e muito bem determinado: em algum momento da volta 50 do GP da Austrália de 1994, quando Mika Salo encostou seu carro no circuito de Adelaide, traído por um sistema elétrico. Mesmo no ano seguinte, quando a diminuta Pacific comprou seu espólio, a história da equipe era dada como encerrada.

Sua trajetória como equipe e símbolo da Fórmula 1 começou em 1958 e terminou 36 anos depois. É surpreendente notar como a Lotus teve um ciclo de vida orgânico, natural: era uma equipe jovem nos anos 50, passando por uma fase de amadurecimento no início dos anos 60 e chegando à sua plenitude em 1963, com o primeiro título mundial. Seguiram-se algumas fases mais inspiradas e outras menos, de maior ou menor sucesso, que podemos chamar de “vida adulta” da equipe, entre 1963 e 1988. No ano seguinte ela inicia seu envelhecimento e declínio até expirar em 1994, primeira temporada de sua história em que não marcou um ponto sequer.

Se o comportamento da Lotus foi orgânico, sua morte decorreu de causas naturais – ao contrário de outros construtores, como a Mercedes e a Alfa Romeo, por exemplo, nos anos 50, que faleceram como que em um acidente (literal, no caso da primeira).

Por outro lado, a presença da Lotus na Fórmula 1 contribuiu para acelerar muitos ciclos de vida e morte. Os pilotos admitiam que um cockpit da Lotus podia levá-los à vitória com a mesma facilidade que podia levá-los ao túmulo – e nisso ela se revelou uma grande metáfora do automobilismo de então, no qual sucesso e perigo corriam muito próximos. Talvez por isso nenhuma outra pintura tenha caído tão bem numa Lotus quanto o preto e dourado: a harmonia entre morte e vitória.

Afinal, foi ao volante de uma Lotus que Rindt sagrou-se o único campeão póstumo da categoria. E, oito anos mais tarde, ao mesmo tempo em que a equipe comemorava o que viria ser o último título de sua história, também lamentava o que viria a ser a última morte em um de seus carros.

A certeza do falecimento que a Lotus pôde dar a muitos dos seus pilotos, no entanto, não foi capaz de assegurar a si própria.

A nova equipe, que alinhará em 2010, é o fruto de um projeto suspeito da inglesa Litespeed associado ao milionário aventureiro malaio Tony Fernandez, bancados pelo dinheiro público da Malásia. Em outra palavras, não tem qualquer relação com o espírito livre e o gênio da engenharia sob os quais Colin Chapman fundou sua fábrica.

A apropriação do nome “Lotus” por terceiros esvazia toda a carga simbólica que ela carrega, apagando assim toda dimensão histórica da Fórmula 1, restando apenas a dimensão comercial. Não que a adição desta equipe no grid do ano que vem vá causar tal transformação – o problema são os próprios promotores da equipe e do esporte aceitarem a utilização do nome Lotus, não pelo que ele representa, mas por seu “valor de marca”. É a prova cabal de que o automobilismo, por um punhado de dólares, aceitou renunciar seu valor cultural.

Em seu opus magnum, Memórias póstumas de Brás Cubas, Machado de Assis faz um morto narrar sua própria vida para mostrar o lado torpe e decadente da sociedade em que viveu. Decadência não falta na Fórmula 1 atual, a julgar pelos escândalos e crises que estouraram nos bastidores da categoria em 2009. E se o “retorno” da equipe Lotus é mais um capítulo escrito com a pena da galhofa e a tinta da melancolia, que ao menos seja escrito por Colin Chapman! Considerando o mistério que cerca sua morte, não seria de todo absurdo nomeá-lo um defunto-autor.

Brás Cubas era certamente mais desocupado e menos talentoso que o engenheiro inglês, mas sua morte teve mais dignidade. Afinal, o retorno da Lotus retira do velho time de Colin Chapman a última fagulha de orgulho que Brás Cubas foi capaz de conservar: não deixar descendentes, não transmitir o legado de nossa miséria.

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