Sunday, November 1, 2009
GP de Abu Dhabi 2009 – O GP de Abu Ghraib e o triunfo do capital investido
Tantos especialistas debruçados sobre a corrida, e foi de um leigo (ao menos, não profissional) que recebi o comentário mais espirituoso e certeiro do fim de semana: “Esse prêmio de Abu Ghraib é uma tortura: não tem as curvas mortais de Suzuka e Spa-Francorchamps”.
O autor da frase é Claudio Júlio Tognolli, um dos mais famosos anônimos que já conheci. Jornalista veterano e prolífico, colecionador de palavras e meu professor na faculdade, que ultimamente vem se dedicando a criticar os blogs e a twittar febrilmente. E sim, foi no Twitter que ele escreveu seu comentário.
As curvas travadas de Yas Marina, tal como Abu Ghraib, são uma prisão que contrasta com a imensidão e o vazio do deserto. Dentro de seus limites o automobilismo se apequena frente à pujança do capital financeiro que se movimenta nas curvas pós-modernas das arquibancadas, dos iates e do hotel acima.
Foi comum ouvir as vozes habituais (de blogueiros a Galvão Bueno) se referirem ao Yas Marina como um “espetáculo”, que talvez designassem as instalações faraônicas ou o dinheiro colocado para erguer uma obra no meio do nada. “Espetáculo”, essa palavrinha que usamos mais ou menos frequentemente e que raramente conseguimos definir esconde uma definição bastante precisa do GP de Abu Dhabi.
Em 1967, quando a Fórmula 1 tinha muito mais graxa e muito mais graça, e muito menos câmeras ao redor, um enigmático incendiário chamado Guy Debord lançou um livro chamado “A Sociedade do Espetáculo”, cujas definições parecem cair como uma luva no automobilismo praticado hoje em dia. Segundo ele, o “espetáculo” não é apenas uma corrida ou um filme ou um programa de tv, mas sim um estágio do capitalismo em que nós, sujeitos, não mais possuímos a mínima relevância na vida econômica e social. Não somos mais atores do processo, somos meros espectadores assistindo os desdobramentos do capital.
Muitos autores comparam “A Sociedade do Espetáculo” à “Indústria Cultural” de Theodor Adorno, que escreveu sua obra em 1947, mas que ainda conserva uma atualidade desconcertante. O trecho abaixo se aplica a qualquer filme feito por Hollywood em tempos recentes:
“É com razão que o interesse de inúmeros consumidores se prende à técnica, não aos conteúdos teimosamente repetidos, ocos e já em parte abandonados. O poderio social que os espectadores adoram é mais eficazmente afirmado na onipresença do estereótipo imposta pela técnica do que nas ideologias rançosas pelas quais os conteúdos efêmeros devem responder”.
Em outras palavras, ele afirma que as pessoas são mais atraídas em um filme pelos efeitos especiais que ele contém do que pelo conteúdo batido e bobinho da narrativa, que aprendemos a tolerar. Jamais exigiremos conteúdos novos, atuais e fascinantes enquanto houver explosões, batidas e cores vibrantes desfilando na tela.
Em Yas Marina, a corrida foi disputada no crepúsculo para que os milhões gastos em iluminação artificial pudessem revelar-se em pirotecnia. Vimos o pôr-do-sol, vimos os refletores acesos, vimos, acima de tudo e de todos, a cobertura do hotel trocando de tonalidades de novo e de novo e de novo.
Afinal, o circuito “moderno” e “de última geração” reproduz a mesma lógica da qual Adorno falava há 60 anos: uma pista tola revestida por uma “espetaculosa” camada de razão técnica. “A Indústria Cultural é o triunfo do capital investido”, dizia Adorno. Os bilhões de petrodólares gastos por Abu Dhabi apenas confirmam este raciocínio.
E já que estamos falando em corrida
Quase ia me esquecendo, houve uma corrida por lá. Dentro dos limites dos guard rails, a última corrida do ano provou cabalmente tudo o que já sabíamos. Em primeiro lugar, que a McLaren tinha o melhor carro, de longe, em circuitos de mentira.
Segundo, que a Red Bull tinha o melhor caro do ano. O azar deles foi ter descoberto isso tarde demais. Claro que isso se deve ao mérito da Brawn, que pode pendurar 2009 na parede e colocar seu nome em cima.
Terceiro, que esta corrida não valia nada. O que é muito positivo, pois traz de volta a leveza dos anos em que a Fórmula 1 tinha diversos eventos fora do campeonato. Na maior parte do ano, as tabelas e classificações nos tiram a atenção do “aqui e agora” (‘hic et nunc’) do automobilismo, e os pilotos são levados a acelerar com mais desapego. Isso se torna claro quando lembramos das corridas em Adelaide, que fecharam as temporadas de 1985 a 1995.
Assim sendo, a perseguição de Button a Webber nos metros finais recapitulou algumas disputas em GPs da Austrália de outrora, como Lafitte versus Streiff (1985), Piquet versus Mansell (1990), Berger versus Schumacher (1992) e tantos outros.
Yas Marina tem a grana que Adelaide nunca viu, mas não a paixão e o desafio que aquelas ruas australianas apresentavam. Infelizmente.
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