Ontem, me deparei com um comentário interessantíssimo sobre Hockenheim no blog inglês F1 Fanatic. Transcrevo ele, editado: "Há um certo romantismo deslocado em relação ao Hockenheimring original. Ele foi usado pela primeira vez (na Fórmula 1) como substituto do Nürburgring Nordschleife - e era mais conhecido por ter sido o circuito onde Jim Clark perdera a vida. Hockenheim se tornou a sede do GP da Alemanha em 1977. Mas como outras pistas se tornaram cada vez mais parecidas, suas características pouco usuais fizeram dele um dos autódromos mais únicos".
Aqui, precisamente, o automobilismo se encontra com a semiótica. Não se preocupe, caro leitor, este não é um daqueles artigos chatos cheios de termos incompreensíveis. Nem sequer vou entrar aqui em detalhes sobre a semiótica. Permita-me, no entanto, discorrer um pouco sobre cinema.
O que aconteceu com Hockenheim ocorreu também com o filme Casablanca. Hoje ele é um clássico. Mas nem sempre foi assim.
Retiro este exemplo do livro do jornalista Marcelo Coelho, "Crítica Cultural: teoria e prática". Na época em que Casablanca foi lançado (1942), o cinema não era, em geral, considerado uma arte. Diga, sem clicar no link, qual é o nome do diretor. Pois bem, a história não concedeu a Michael Curtiz o rótulo de gênio ou de artista, e acabou caindo no anonimato. Não à toa o filme foi um sucesso em seu lançamento - ele foi feito para a diversão das massas.
Com o tempo, porém, Hollywood foi reformulando seu modo de filmar. Os suspenses foram ganhado mais explosões, mais câmeras lentas para reforçar a tensão, mais perseguições em alta velocidade, mais músicas de fundo sentimentalóides em momentos românticos, mais "cores"... Mais enquadramentos gritantes em 'plongé' para acentuar a bondade ou a ruindade de um personagem.
E, subitamente, signos que pareciam óbvios para o espectador do passado exigem mais esforço do espectador do presente para ser compreendido. Seu roteiro esquemático se despiu, por assim dizer, de certos elementos, e revelou sutilezas antes encobertas.
Voltemos a Hockenheim, que um jornalista, em virtude da morte de Jim Clark, definiu como uma sequência de retas que leva a uma seção "ridícula" de curvas de baixa. De fato, numa época de carros sem aerofólios, longas retas e curvas de baixa não traziam oportunidade alguma para um piloto demonstrar sua habilidade.
Acontece que a aderência mecânica dos carros foi suplantada, nos anos seguintes, pela aderência aerodinâmica. Como foi dito no início do post, os autódromos mudaram, foram ficando mais iguais, e de repente já não era mais tão comum assim períodos tão longos de aceleração contínua, nem tampouco a sensação de se abrir caminho numa floresta. Durante mais de seis quilômetros Hockenheim exige o menor aerofólio possível, mas aí chegam as tais curvas de baixa e o carro não tem a mínima pressão aerodinâmica... Com um motor de sete, oito centenas de cavalos, sem aderência e com o assoalho a milímetros do chão, elas já não são mais tão "ridículas" assim.
Aconteceu com Casablanca e Hockenheim um processo análogo, o de ressignificação. O conteúdo é o mesmo, mas a recepção se altera. Isso é algo maravilhoso, pois é a prova de que ocorre aquilo que Gilles Deleuze, um desses tiozinhos do pós-estruturalismo, chama de "desterritorialização e reterritorialização" dos sujeitos. Do que se conclui que toda produção humana será sempre incompleta.
Neste fim de semana, veremos uma outra Hockenheim, desta vez fisicamente diferente. Ao invés de seguir floresta adentro, os pilotos frearão à direita para a Bernie Ecclestone Kurve (sério) para um circuito que se tornou igual a todos, talvez até "mais igual" que os demais. Quem sabe se um certo escritório alemão de arquitetura se preocupasse mais com a semiótica, a "modernização" ocorrida em 2002 não tivesse varrido um dos fenômenos mais fascinantes da história do automobilismo.
Friday, July 23, 2010
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