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Tantos especialistas debruçados sobre a corrida, e foi de um leigo (ao menos, não profissional) que recebi o comentário mais espirituoso e certeiro do fim de semana: “Esse prêmio de Abu Ghraib é uma tortura: não tem as curvas mortais de Suzuka e Spa-Francorchamps”.
O autor da frase é Claudio Júlio Tognolli, um dos mais famosos anônimos que já conheci. Jornalista veterano e prolífico, colecionador de palavras e meu professor na faculdade, que ultimamente vem se dedicando a criticar os blogs e a twittar febrilmente. E sim, foi no Twitter que ele escreveu seu comentário.
As curvas travadas de Yas Marina, tal como Abu Ghraib, são uma prisão que contrasta com a imensidão e o vazio do deserto. Dentro de seus limites o automobilismo se apequena frente à pujança do capital financeiro que se movimenta nas curvas pós-modernas das arquibancadas, dos iates e do hotel acima.
Foi comum ouvir as vozes habituais (de blogueiros a Galvão Bueno) se referirem ao Yas Marina como um “espetáculo”, que talvez designassem as instalações faraônicas ou o dinheiro colocado para erguer uma obra no meio do nada. “Espetáculo”, essa palavrinha que usamos mais ou menos frequentemente e que raramente conseguimos definir esconde uma definição bastante precisa do GP de Abu Dhabi.
Em 1967, quando a Fórmula 1 tinha muito mais graxa e muito mais graça, e muito menos câmeras ao redor, um enigmático incendiário chamado Guy Debord lançou um livro chamado “A Sociedade do Espetáculo”, cujas definições parecem cair como uma luva no automobilismo praticado hoje em dia. Segundo ele, o “espetáculo” não é apenas uma corrida ou um filme ou um programa de tv, mas sim um estágio do capitalismo em que nós, sujeitos, não mais possuímos a mínima relevância na vida econômica e social. Não somos mais atores do processo, somos meros espectadores assistindo os desdobramentos do capital.
Muitos autores comparam “A Sociedade do Espetáculo” à “Indústria Cultural” de Theodor Adorno, que escreveu sua obra em 1947, mas que ainda conserva uma atualidade desconcertante. O trecho abaixo se aplica a qualquer filme feito por Hollywood em tempos recentes:
“É com razão que o interesse de inúmeros consumidores se prende à técnica, não aos conteúdos teimosamente repetidos, ocos e já em parte abandonados. O poderio social que os espectadores adoram é mais eficazmente afirmado na onipresença do estereótipo imposta pela técnica do que nas ideologias rançosas pelas quais os conteúdos efêmeros devem responder”.
Em outras palavras, ele afirma que as pessoas são mais atraídas em um filme pelos efeitos especiais que ele contém do que pelo conteúdo batido e bobinho da narrativa, que aprendemos a tolerar. Jamais exigiremos conteúdos novos, atuais e fascinantes enquanto houver explosões, batidas e cores vibrantes desfilando na tela.
Em Yas Marina, a corrida foi disputada no crepúsculo para que os milhões gastos em iluminação artificial pudessem revelar-se em pirotecnia. Vimos o pôr-do-sol, vimos os refletores acesos, vimos, acima de tudo e de todos, a cobertura do hotel trocando de tonalidades de novo e de novo e de novo.
Afinal, o circuito “moderno” e “de última geração” reproduz a mesma lógica da qual Adorno falava há 60 anos: uma pista tola revestida por uma “espetaculosa” camada de razão técnica. “A Indústria Cultural é o triunfo do capital investido”, dizia Adorno. Os bilhões de petrodólares gastos por Abu Dhabi apenas confirmam este raciocínio.
E já que estamos falando em corrida
Quase ia me esquecendo, houve uma corrida por lá. Dentro dos limites dos guard rails, a última corrida do ano provou cabalmente tudo o que já sabíamos. Em primeiro lugar, que a McLaren tinha o melhor carro, de longe, em circuitos de mentira.
Segundo, que a Red Bull tinha o melhor caro do ano. O azar deles foi ter descoberto isso tarde demais. Claro que isso se deve ao mérito da Brawn, que pode pendurar 2009 na parede e colocar seu nome em cima.
Terceiro, que esta corrida não valia nada. O que é muito positivo, pois traz de volta a leveza dos anos em que a Fórmula 1 tinha diversos eventos fora do campeonato. Na maior parte do ano, as tabelas e classificações nos tiram a atenção do “aqui e agora” (‘hic et nunc’) do automobilismo, e os pilotos são levados a acelerar com mais desapego. Isso se torna claro quando lembramos das corridas em Adelaide, que fecharam as temporadas de 1985 a 1995.Assim sendo, a perseguição de Button a Webber nos metros finais recapitulou algumas disputas em GPs da Austrália de outrora, como Lafitte versus Streiff (1985), Piquet versus Mansell (1990), Berger versus Schumacher (1992) e tantos outros.Yas Marina tem a grana que Adelaide nunca viu, mas não a paixão e o desafio que aquelas ruas australianas apresentavam. Infelizmente.

Continuação
Com Piquet, as coisas funcionam um pouco diferente. A batida em Cingapura não foi uma manobra desesperada, quanto menos irracional. Foi um movimento planejado, calculado, executado. Houve um ou dois mentores, houve uma reunião a portas fechadas, um dedo apontado no mapa.
Foi um jogo de equipe, para que seu companheiro ganhasse a prova. Para que a Renault ganhasse a prova, em última análise. Foi um movimento corporativo.
Piquet foi cúmplice da instrumentalização extrema do automobilismo. É claro que tal instrumentalização existe o tempo todo (nos patrocínios, no marketing das fábricas envolvidas), mas de forma velada: se ela vem à tona, o pacto com o espectador é quebrado.
Por isso mesmo é bem capaz que a Fórmula 1 não aceite mais Piquet. E nós também não aceitamos: mais uma vez, também passamos todo dia pela mesma situação - ser coagido a agir em benefício da empresa à qual vendemos nossa força de trabalho. Quando sentamos em nosso sofá, porém, queremos ver alguém que nos liberte (essencialmente na aparência), que não nos reproduza. Jamais perdoaremos Nelsinho por aceitar fazer o que somos obrigados a fazer para viver.
“A diversão é o prolongamento do trabalho no capitalismo tardio”, diz Adorno. Quando alguém nos joga isso na cara, nos enfurecemos.
(Continua)
Leia também, sobre o mesmo tema: os comentários de Keith Collantine, do F1 Fanatic e Simon Barnes, do The Times (ambos em inglês).
O assunto post anterior suscitou uma boa discussão nos comentários e se abre para uma série de outras questões. Uma delas: o que tem teria de tão errado James Hunt fumar no pódio, se o carro dele era patrocinado pela Marlboro? Resposta: nada de errado.
Mas quando Kimi Raikkonen é flagrado na noite, durante a pré-temporada, com um cigarro na mão, ele vira a primeira página dos tabloides ingleses. Pior ainda: seu carro é patrocinado pela mesma Marlboro.
Já vimos que Raikkonen é piloto de uma época em que as mortes no automobilismo não são frequentes nem toleráveis, e que o corpo do piloto segue uma disciplina rígida para se manter em forma. Já Hunt é de uma época em que sentar em um carro de corrida é, conscientemente ou não, se recusar a entregar o corpo a uma disciplina que o coloque para trabalhar em função do capitalismo ou qualquer outro grande sistema de poder.
Também nos anos 60 e 70, época em que já se sabia os males advindos do cigarro, fumar era um pouco como sentar em um carro de corrida, na visão de alguns. A lógica do pensamento era que o Estado (capitalista, burguês) não queria que seus cidadãos fumassem, pois um fumante daria muito mais despesa ao sistema de saúde, ao mesmo tempo em que sua produtividade seria muito menor.
Logo, fumar seria uma forma e combater o poder do Estado (logo, o poder do capital e da burguesia). Até hoje ainda se pensa da mesma forma em algumas regiões, a começar pela França. Fumando, nos libertamos da opressão sofrida por nosso corpo.
Não por acaso a indústria do tabaco formou uma parceria tão forte com o automobilismo. Já falei sobre isso em outro post, mas vale a pena retomar.
As tabagistas se interessaram pela Fórmula 1 (e o automobilismo) porque era uma forma de driblar as restrições impostas à propaganda de cigarro na Europa desde o fim dos anos 60. Mas por que a Fórmula 1 se interessou pelas tabagistas?
Sabemos que Colin Chapman foi o primeiro a estampar um patrocínio não-vinculado a automobilismo em seus carros, em 1968. Por que ele precisaria desse dinheiro? Aí vai a minha hipótese: para a pesquisa em aerodinâmica. No mesmo ano de 68 os aerofólios apareceram nos carros. Em 1972, a Lotus apresenta seu primeiro bólido em formato de cunha. Na mesma época, a Brabham começa a pensar no embrião do efeito-solo. Ok, a Brabham não era patrocinada em 72. Nos anos seguintes, ela se associa à Martini.
Os pilotos eram garotos-propaganda ideais para o cigarro (principalmente ele, embora também para bebidas e outros) pelos motivos já colocados: arriscavam a vida, não submetiam seu corpo à lógica do trabalho. Mas será que não há nada de errado nessa história?
Afinal, por mais que não houvesse nada de errado em ser fumante e piloto de alto nível ao mesmo tempo, a empresa tabagista não ganha dinheiro vendendo cigarros para pilotos, mas sim para as pessoas comuns, como eu ou você, que trabalham durante a semana. O que faz essa pessoa ligar a tv para assistir à Formula 1 no domingo?
Um filósofo chamado Theodor Adorno, que morreu em 69, dedicou sua vida a responder a essa pergunta (claro, tendo outras balizas que não a tv e não a Fórmula 1). Ele formularia a resposta da seguinte forma: o cidadão comum liga a tv para ver pilotos correndo, ou seja, pessoas livres da disciplina imposta ao corpo, porque ele não pode fazer a mesma coisa. Ele não pode ser livre, por isso se contenta que outros sejam livres no lugar dele. Ele troca seu prazer real pelo prazer voyeur. A Fórmula 1 (e não só ela), portanto, é a válvula da panela de pressão que é a vida do espectador: sem ela, o espectador iria lutar para conquistar sua própria liberdade, ao invés de se contentar com a liberdade dos outros.
E o piloto, como fica nessa história? Ele é o símbolo da liberdade ou o mais perverso agente da opressão?
Não é preciso dizer que este não é um debate encerrado. Ao mesmo tempo em que a questão da liberdade do corpo perdia força, o mesmo acontecia com as teorias de Adorno. E a Fórmula 1 via cada vez menos mortes. Adorno termina sua teoria dizendo que o sistema, que ele chama de Indústria Cultural, sequestra os momentos de lazer do indivíduo e os transforma numa imitação amigável do trabalho.
Nada mais natural, portanto, que os pilotos, de bon vivants nos anos 70, sejam hoje compenetrados workaholics.