Enquanto esteve no paddock, Flavio Briatore nos era um lembrete de que a Fórmula 1 é um negócio acima de tudo
Pouco após o desfecho de um julgamento orquestrado exclusivamente para banir Flavio Briatore da Fórmula 1 e das corridas em geral, Alessandra Alves postou em seu blog um comentário sobre a punição ao italiano, intitulada "We got him". Ela se refere à frase de um funcionário do governo americano ao prender Saddam Hussein. Achei interessante, porque quando tive conhecimento da punição uma outra frase de um outro funcionário do governo americano também me veio à cabeça: "Follow the money".
O contexto onde a frase foi proferida não é lá muito pomposo (uma garagem vazia no meio da madrugada), e seu autor tinha nome de filme pornô. Deep Throat, ou Garganta Profunda, o informante anônimo de dois jornalistas do Washington Post no caso Watergate, no qual uma misteriosa invasão da sede do partido democrata forçou a renúncia do presidente republicano Richard Nixon. A frase "Follow the money" ("Siga o dinheiro") revelou aos jornalistas uma das provas cabais da investigação: os milhares de dólares que os invasores portavam eram constituídos de notas sequenciais - que só podem ser obtidas em um lugar, a casa da moeda.
Briatore não teve tempo ou decência para renunciar a seu posto na Renault, quando o escândalo da batida de Nelsinho veio à tona. Mas nenhuma outra frase define melhor o percurso de sua bem-sucedida (até ontem) carreira. A sua vida foi (e é) seguir o dinheiro. Ao menos é a impressão que o italiano deixou em Ico numa entrevista recente, relatada neste post.
Coloque alguém que entende de negócios, apenas negócios, na Fórmula 1 dos anos 60 e você poderá contar em dias o tempo de permanência dele no meio. Coloque este mesmo alguém na Fórmula 1 dos anos 80 e ele se transformará numa das figuras mais poderosas do paddock. Triste reconhecer, mas a presença de Flavio Briatore na Fórmula 1 era uma forma de lembrar que a categoria é um negócio antes e acima de tudo. Como isso foi acontecer?
Numa publicação britânica de 2000 que no Brasil foi chamada de “Fórmula 1 – 50 Anos Dourados” (nunca vi ninguém que tivesse um outro exemplar, além de mim), Joe Saward parece tentar responder a esta questão. Em seu texto sobre os anos 80, ele contextualiza o período e nos dá algumas direções de interpretação a respeito do fenômeno do qual Briatore é um dos mais pujantes sintomas. Reproduzo a seguir alguns trechos:
“Margaret Tatcher estava no poder, lutando contra os sindicatos visando abrir caminho para a livre iniciativa e a privatização. O capitalismo era o credo e foi adotado entusiasticamente pelos proprietários de equipes de Fórmula 1 – constituídos principalmente de britânicos”.
O único grande time que emergiu nos anos oitenta foi a Benetton – Joe Saward
“Enquanto tudo isso estava acontecendo, o poder da televisão se tornava cada vez mais penetrante em todo o mundo. O total alcançado com a venda dos direitos de tv para os Jogos Olímpicos saltou de US$ 139 milhões em 1980 para US$ 899 milhões em 1992. (...) Com o dinheiro vieram os problemas”.
“Porém, com todas as mudanças e todo o dinheiro, se observarmos o grid da primeira corrida da década, em janeiro de 1980, e o compararmos com a última prova dos anos oitenta na Austrália, em 1989, eles eram muito semelhantes. Oito equipes eram as mesmas – ao menos no nome. (...)
Entre as grandes equipes de 1980 que não sobreviveram até 1990, a Renault desistiu de manter uma equipe, mas ainda continuava como fornecedora de motores; a Alfa Romeo foi comprada pela Fiat que, acertadamente, concluiu que era mais sábio utilizar o nome da Ferrari na F1. A Ensign e a ATS faliram. O único grande competidor que emergiu nos anos oitenta foi a Benetton”.
Não constituiu nenhuma surpresa quando os pilotos começaram a perder o senso da realidade - idem
“Em um esforço para atrair patrocinadores empresariais – e talvez justificar seus enormes gastos – as equipes tornaram-se mais ‘profissionais’. Começaram a se vestir elegantemente em uniformes. Adquiriram caminhões articulados reluzentes que eram usados como painéis de propaganda dos patrocinadores pelas estradas da Europa. Investiram em caros motorhomes e o aceso ao paddock – e às personalidades – tornou-se cada vez mais restrito.
Isso significava que os espectadores raramente viam os pilotos, se é que viam alguma vez e, no final da década, estava se tornando mais difícil para a mídia se aproximar das estrelas. Paparicados e distantes do mundo real, em motorhomes e jatinhos particulares, cercados por conselheiros e advogados, não constituiu nenhuma surpresa quando os pilotos começaram a perder o senso da realidade”.
“Do ponto de vista técnico, os regulamentos foram transgredidos quando as equipes tentaram encontrar uma margem competitiva. Deixou de existir qualquer ‘espírito’ nos regulamentos”.
Os paralelos com a vida de Briatore gritam, apesar de Saward não ter citado seu nome em qualquer momento. A Benetton é uma das equipes que mais investiu nos “uniformes”, e foi por ela que Flavio entrou no paddock, no GP da Austrália de 1988, para no ano seguinte assumir o time – depois de Luciano Benetton ter demitido boa parte do staff.
Briatore, Benetton, comercialização do esporte. Ainda não pretendo juntar estas pontas. Farei isso em um próximo post, ainda nesta semana. Enquanto isso, gostaria de saber do leitor: se Flavio Briatore é um sintoma da transformação da Fórmula 1 em business, você acha que a saída dele representa, de alguma forma, o retorno parcial de um automobilismo de outros tempos?
Pouco após o desfecho de um julgamento orquestrado exclusivamente para banir Flavio Briatore da Fórmula 1 e das corridas em geral, Alessandra Alves postou em seu blog um comentário sobre a punição ao italiano, intitulada "We got him". Ela se refere à frase de um funcionário do governo americano ao prender Saddam Hussein. Achei interessante, porque quando tive conhecimento da punição uma outra frase de um outro funcionário do governo americano também me veio à cabeça: "Follow the money".
O contexto onde a frase foi proferida não é lá muito pomposo (uma garagem vazia no meio da madrugada), e seu autor tinha nome de filme pornô. Deep Throat, ou Garganta Profunda, o informante anônimo de dois jornalistas do Washington Post no caso Watergate, no qual uma misteriosa invasão da sede do partido democrata forçou a renúncia do presidente republicano Richard Nixon. A frase "Follow the money" ("Siga o dinheiro") revelou aos jornalistas uma das provas cabais da investigação: os milhares de dólares que os invasores portavam eram constituídos de notas sequenciais - que só podem ser obtidas em um lugar, a casa da moeda.
Briatore não teve tempo ou decência para renunciar a seu posto na Renault, quando o escândalo da batida de Nelsinho veio à tona. Mas nenhuma outra frase define melhor o percurso de sua bem-sucedida (até ontem) carreira. A sua vida foi (e é) seguir o dinheiro. Ao menos é a impressão que o italiano deixou em Ico numa entrevista recente, relatada neste post.
Coloque alguém que entende de negócios, apenas negócios, na Fórmula 1 dos anos 60 e você poderá contar em dias o tempo de permanência dele no meio. Coloque este mesmo alguém na Fórmula 1 dos anos 80 e ele se transformará numa das figuras mais poderosas do paddock. Triste reconhecer, mas a presença de Flavio Briatore na Fórmula 1 era uma forma de lembrar que a categoria é um negócio antes e acima de tudo. Como isso foi acontecer?
Numa publicação britânica de 2000 que no Brasil foi chamada de “Fórmula 1 – 50 Anos Dourados” (nunca vi ninguém que tivesse um outro exemplar, além de mim), Joe Saward parece tentar responder a esta questão. Em seu texto sobre os anos 80, ele contextualiza o período e nos dá algumas direções de interpretação a respeito do fenômeno do qual Briatore é um dos mais pujantes sintomas. Reproduzo a seguir alguns trechos:
“Margaret Tatcher estava no poder, lutando contra os sindicatos visando abrir caminho para a livre iniciativa e a privatização. O capitalismo era o credo e foi adotado entusiasticamente pelos proprietários de equipes de Fórmula 1 – constituídos principalmente de britânicos”.
O único grande time que emergiu nos anos oitenta foi a Benetton – Joe Saward
“Enquanto tudo isso estava acontecendo, o poder da televisão se tornava cada vez mais penetrante em todo o mundo. O total alcançado com a venda dos direitos de tv para os Jogos Olímpicos saltou de US$ 139 milhões em 1980 para US$ 899 milhões em 1992. (...) Com o dinheiro vieram os problemas”.
“Porém, com todas as mudanças e todo o dinheiro, se observarmos o grid da primeira corrida da década, em janeiro de 1980, e o compararmos com a última prova dos anos oitenta na Austrália, em 1989, eles eram muito semelhantes. Oito equipes eram as mesmas – ao menos no nome. (...)
Entre as grandes equipes de 1980 que não sobreviveram até 1990, a Renault desistiu de manter uma equipe, mas ainda continuava como fornecedora de motores; a Alfa Romeo foi comprada pela Fiat que, acertadamente, concluiu que era mais sábio utilizar o nome da Ferrari na F1. A Ensign e a ATS faliram. O único grande competidor que emergiu nos anos oitenta foi a Benetton”.
Não constituiu nenhuma surpresa quando os pilotos começaram a perder o senso da realidade - idem
“Em um esforço para atrair patrocinadores empresariais – e talvez justificar seus enormes gastos – as equipes tornaram-se mais ‘profissionais’. Começaram a se vestir elegantemente em uniformes. Adquiriram caminhões articulados reluzentes que eram usados como painéis de propaganda dos patrocinadores pelas estradas da Europa. Investiram em caros motorhomes e o aceso ao paddock – e às personalidades – tornou-se cada vez mais restrito.
Isso significava que os espectadores raramente viam os pilotos, se é que viam alguma vez e, no final da década, estava se tornando mais difícil para a mídia se aproximar das estrelas. Paparicados e distantes do mundo real, em motorhomes e jatinhos particulares, cercados por conselheiros e advogados, não constituiu nenhuma surpresa quando os pilotos começaram a perder o senso da realidade”.
“Do ponto de vista técnico, os regulamentos foram transgredidos quando as equipes tentaram encontrar uma margem competitiva. Deixou de existir qualquer ‘espírito’ nos regulamentos”.
Os paralelos com a vida de Briatore gritam, apesar de Saward não ter citado seu nome em qualquer momento. A Benetton é uma das equipes que mais investiu nos “uniformes”, e foi por ela que Flavio entrou no paddock, no GP da Austrália de 1988, para no ano seguinte assumir o time – depois de Luciano Benetton ter demitido boa parte do staff.
Briatore, Benetton, comercialização do esporte. Ainda não pretendo juntar estas pontas. Farei isso em um próximo post, ainda nesta semana. Enquanto isso, gostaria de saber do leitor: se Flavio Briatore é um sintoma da transformação da Fórmula 1 em business, você acha que a saída dele representa, de alguma forma, o retorno parcial de um automobilismo de outros tempos?
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