Thursday, September 24, 2009

O pogrom e o jet lag

Título alternativo: Onde a Fórmula 1 não faz barulho

A feliz afirmação do
blogueiro Luis Marcelo de que o GP de Cingapura é a melhor metáfora que a Fórmula 1 tem de si mesma não cessa de encontrar confirmações. Destas, talvez nenhuma se sobreponha escândalo da batida proposital de Nelsinho Piquet: uma categoria ávida por jogar luz sobre si mesma, mas rodeada pelas trevas – uma batida instrumental marca seu primeiro GP noturno.

A formatação da prova em Marina Bay exalta as contradições enfrentadas atualmente pelo campeonato mundial: desejoso do capital asiático, dependente do público europeu. Não haveria momento mais propício, portanto, para que fosse publicada a notícia de que uma das pistas mais tradicionais do automobilismo corre o risco de ter a licença de funcionamento cassada.

Vizinhos de Spa-Francorchamps entraram com uma ação contra o autódromo em 2007 alegando ruído excessivo causado pelas atividades de pista. O Conselho de Estado da Bélgica deu ganho de causa a eles, embora os administradores tenham entrado com recurso. O processo ainda está em andamento.

Não é
algo inédito. Alguns europeus ocidentais orgulhosos dos pedaços de terra que sua família possui há uma ou duas dúzias de gerações não estão mais dispostos a escutar os ruídos de motor que não faz muito tempo tanto lhes aprazia. O caso de Spa é sintomático, já que há três décadas os carros passavam literalmente nas ruas das vilas (na foto, Jim Clark em sua Lotus, em 1965: alguém reclamou do barulho?).

Dizem alguns, foi naquela mesma região, em 1902, que europeus tentaram fazer aquilo que os norte-americanos tinham tentado em meados da década anterior: correr em círculos, não de cidade em cidade. Com o trágico Paris-Madri no ano seguinte, este modelo se provou mais sustentável, mas este primeiro circuito não foi mais utilizado.

Apenas nos anos 20 o jornalista Jules de Their e Henri Langlois Van Ophem idealizaram um triângulo de estradas de 15 km que permaneceu quase o mesmo palco para corridas no meio século seguinte. Em seu lugar surgiu o autódromo atual, que conserva parte do traçado aposentado.

A revolta da entourage de Spa traz à tona uma contradição amarga: se os europeus ainda são a locomotiva da audiência mundial da Fórmula 1, porque tantos se esforçam para esmagar as praças automotivas, tal qual um pogrom que força o automobilismo a procurar outras terras?

Já sabemos que a categoria tem se afastado da Europa também pelas extorsivas taxas praticadas pela FOM. Quando são repassadas ao público, os europeus, ao contrário dos brasileiros, preferem não pagar tão caro por um ingresso.

Mas há um fenômeno paralelo, menos alardeado. O fato é que a Europa Ocidental está destruindo o mobiliário automobilístico que uma vez lhe deu orgulho. Se ainda gostam de corridas, é para olhá-las pela televisão. Não os culpo.


Apreensão indireta
As corridas de automóvel hoje em dia são midiáticas. Em nome da segurança (mas por interesses diversos), toda e qualquer experiência sensível do espectador foi subtraída. Imagine-se sentado num barranco à beira da Malmedy, esperando os carros passarem, nos anos 60. Alguns despontam na frente, outros disputam posições entre si. Você nota aqueles que freiam antes, os que freiam depois, mais agressivos, diferentes traçados, e estabelece suas próprias preferências com base naquilo. Há tempo de conversar, discutir com os espectadores a seu lado. Ouve-se ao longe o barulho dos motores que se aproximam e se afastam.

Hoje a formatação para a tv estandardizou o gosto. O melhor piloto é o que o cronômetro diz que é – e qual das curvas tilkeanas atuais vai dizer que não? O rápido corte das imagens na transmissão faz com que você não desgrude da tela – onde nada de relevante, contudo, parece acontecer. Estar à beira da pista é atordoante. Você não entende nada do que está acontecendo, a não ser que pregue os olhos no telão.

Se a organização suga quase toda vantagem econômica que o evento pode trazer à região, então por que promover um? Leve-se a Fórmula 1 para um lugar onde ela não faz barulho. Mas o ciclo tende a se perpetuar, e se a Fórmula 1 não se der conta disso rápido nem todos os ienes e iuans irão ressuscitar o interesse do resto do mundo na categoria.

Há poucas semanas saiu de cartaz em São Paulo o filme Horas de Verão (
L’heure d’été), de Olivier Assayas. Talvez o diretor não goste de corridas, mas soube colocar em película muito do panorama do automobilismo presente. Uma família de três irmãos que tem de se manter (ou se desfazer de) o acervo de um antepassado artista. A irmã artista (Juliette Binoche) mora em Nova York, onde está seu público. O irmão yuppie está na Ásia, porque é lá que está o dinheiro. Gradualmente, a Europa se despoja de sua própria cultura, se aliena de si mesma, se esvazia. Com a Fórmula 1 não é diferente.

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