Há um ou dois anos esteve em cartaz, no Brasil, um maravilhoso filme sueco chamado “Vocês, os Vivos” (Du Levande), do diretor Roy Andersson. Infelizmente, a rarefeita distribuição privou boa parte do público de assistir uma obra pouco convencional e de humor corrosivo, frente à avalanche de lugares-comuns que marca a atual fase do cinema comercial norte-americano.
Por alguma razão obscura, nestes dias passou pela minha cabeça que não haveria título melhor para um post sobre o cinqüentenário do nascimento de Ayrton Senna. Cinquentenário de nascimento, precisamente, porque mortos não fazem aniversário.
Voltando ao filme, que não vem ao caso comentar, ele explica logo de cara a inspiração para seu título. Uma citação epigráfica surge na tela, retirada das Elegias Romanas de Goethe: “Bem aventurados vocês, os vivos, em suas confortáveis camas aquecidas, antes que a gelada onda do Lethe venha molhar os seus pés” (tradução livre e sujeita a erros). O Lethe, segundo a mitologia grega, é um dos cinco rios de Hades, que levam ao reino dos mortos. A tradução literal do nome seria ‘esquecimento’.
Senna, famoso por sua velocidade nas pistas enquanto vivo, permanece notório em morte, pela lentidão sem paralelos com que caminha em direção ao esquecimento. Nada mais natural, no entanto, para quem foi submetido à exposição de tantas lentes fotográficas e câmeras de TV.
Quando alguém morria nos tempos de Goethe, tudo o que dela restava eram as lembranças nas memórias de terceiros e as obras, talvez um ou outro retrato feito a mão. Talvez a morte de uma celebridade contemporânea seja mais difícil de elaborar porque sua imagem e seus gestos permanecem, intensamente documentados, a um “google” de distância. E, se Debord estava certo, produzir imagens era a finalidade última das vidas destas pessoas no capitalismo tardio.
E se há duzentos anos os europeus subjugavam as culturas indígenas, por exemplo, porque estes acreditavam poder falar com os mortos ou receber conselhos antepassados, hoje já não podemos mais nos dar a este direito: a concepção cristã de que as almas vão para um lugar onde permanecem incomunicáveis parece tão ou mais absurda. No Youtube, Ayrton Senna, Jim Clark, Michael Jackson e Brittany Murphy estabelecem conosco um intenso diálogo.
E assim Senna chega aos 50 anos, sem os traços da idade, sem cabelos brancos, com o frescor no olhar de quem mal chegou à idade da razão. Dizem seus detratores que ele fez um bom negócio, e não estão de todo errados. Em compensação, suas imagens mais recentes já estão amareladas pelo distante ano de 1994. A moda da época, os assuntos da época, a música da época, tudo o que mudou em 15 anos começa a gritar aos nossos olhos.
Mais gritante, porém, que o mundo em volta de Senna, seja talvez o próprio Senna – um Ayrton que nasceu há quinze anos, destinado a ser o herói da nação ou um filantropo, mas quase nunca piloto: o Ayrton Senna mito.
Senna mito, sorrateiramente, se esgueira por entre as imagens, contamina as fotos, surge na delicada edição dos vídeos, e começa a ocupar o lugar onde antes estava um homem, um piloto, um talento. O mito impregna de tudo com o brilho que nos ofusca a visão e nos impede de ver o verdadeiro gênio.
Por trás do mito, dos confins obscuros da memória, Ayrton Senna fala a nós, os vivos: que a lembrança pode ser a forma mais cruel de esquecimento.
Por alguma razão obscura, nestes dias passou pela minha cabeça que não haveria título melhor para um post sobre o cinqüentenário do nascimento de Ayrton Senna. Cinquentenário de nascimento, precisamente, porque mortos não fazem aniversário.
Voltando ao filme, que não vem ao caso comentar, ele explica logo de cara a inspiração para seu título. Uma citação epigráfica surge na tela, retirada das Elegias Romanas de Goethe: “Bem aventurados vocês, os vivos, em suas confortáveis camas aquecidas, antes que a gelada onda do Lethe venha molhar os seus pés” (tradução livre e sujeita a erros). O Lethe, segundo a mitologia grega, é um dos cinco rios de Hades, que levam ao reino dos mortos. A tradução literal do nome seria ‘esquecimento’.
Senna, famoso por sua velocidade nas pistas enquanto vivo, permanece notório em morte, pela lentidão sem paralelos com que caminha em direção ao esquecimento. Nada mais natural, no entanto, para quem foi submetido à exposição de tantas lentes fotográficas e câmeras de TV.
Quando alguém morria nos tempos de Goethe, tudo o que dela restava eram as lembranças nas memórias de terceiros e as obras, talvez um ou outro retrato feito a mão. Talvez a morte de uma celebridade contemporânea seja mais difícil de elaborar porque sua imagem e seus gestos permanecem, intensamente documentados, a um “google” de distância. E, se Debord estava certo, produzir imagens era a finalidade última das vidas destas pessoas no capitalismo tardio.
E se há duzentos anos os europeus subjugavam as culturas indígenas, por exemplo, porque estes acreditavam poder falar com os mortos ou receber conselhos antepassados, hoje já não podemos mais nos dar a este direito: a concepção cristã de que as almas vão para um lugar onde permanecem incomunicáveis parece tão ou mais absurda. No Youtube, Ayrton Senna, Jim Clark, Michael Jackson e Brittany Murphy estabelecem conosco um intenso diálogo.
E assim Senna chega aos 50 anos, sem os traços da idade, sem cabelos brancos, com o frescor no olhar de quem mal chegou à idade da razão. Dizem seus detratores que ele fez um bom negócio, e não estão de todo errados. Em compensação, suas imagens mais recentes já estão amareladas pelo distante ano de 1994. A moda da época, os assuntos da época, a música da época, tudo o que mudou em 15 anos começa a gritar aos nossos olhos.
Mais gritante, porém, que o mundo em volta de Senna, seja talvez o próprio Senna – um Ayrton que nasceu há quinze anos, destinado a ser o herói da nação ou um filantropo, mas quase nunca piloto: o Ayrton Senna mito.
Senna mito, sorrateiramente, se esgueira por entre as imagens, contamina as fotos, surge na delicada edição dos vídeos, e começa a ocupar o lugar onde antes estava um homem, um piloto, um talento. O mito impregna de tudo com o brilho que nos ofusca a visão e nos impede de ver o verdadeiro gênio.
Por trás do mito, dos confins obscuros da memória, Ayrton Senna fala a nós, os vivos: que a lembrança pode ser a forma mais cruel de esquecimento.
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