Quando, na sexta-feira, Felipe Massa saiu da Parabolica a toda velocidade, em plena brita, apenas alguma sorte e muita perícia fizeram-no voltar ileso, e com o carro imprestável, de volta ao asfalto.
Mas ele foi a exceção, já que a imensa maior parte das saídas de pista que aconteceram GP da Itália foram situadas nas chicanes - ou, mais propriamente, primeira e segunda chicanes.
Hulkenberg perde o ponto de freada enquanto disputa a posição? Passe a chicane e devolva (ou não) a posição alguns metros à frente. Sakon Yamamoto (foto) vê os líderes afoitos pelo retrovisor? Simples, passe reto na chicane e deixe os mais rápidos seguirem seu curso.
O traçado de Monza não mudou muito de há uma década para cá. Porém, como Heidegger muito bem apontou, um espaço só pode ser definido por aquilo que o delimita: e o entorno da pista italiana, este sim sofreu alterações relevantes.
Pois até os anos 90, as áreas de escape das chicanes não eram um mero prolongamento do asfalto com sinaizinhos de trânsito. Elas estavam cheias de brita. Se o piloto escapasse durante uma disputa (como Hulkenberg o fez mais de uma vez), o menor dos problemas dele seria contornar cones e pensar em devolver a posição uma curva à frente: com sorte sua corrida não terminaria ali mesmo.
Em outras palavras, a punição por não percorrer o traçado, há mais ou menos dez anos, era física - haveria brita até na orelha do infrator, sua perda de velocidade seria decorrente do atrito entre a área de escape e o carro, que, se saísse de lá, poderia sair danificado. Hoje, a punição é virtual - contorna-se um segundo traçado e, dependendo do julgamento de uma instância judicial, que aqui chamamos de 'Race Control', a posição relativa na pista é revertida à que existia antes da infração.
AS CHICANES E AS COISAS
Por ora, talvez seja melhor nos afastarmos dos juízos de valor. Dessa forma, ao invés de dizer que Monza perdeu 'emoção' na última década, digamos apenas que ela perdeu 'materialidade'.
Não totalmente, claro: Hamilton que o diga, em suas visitas frequentes à área de escape da di Lesmo, e até mesmo Massa, supracitado. Mas Monza, por estar no calendário mundial há 60 anos, serve como bom termômetro das mudanças do automobilismo. E muitas partes de seu traçado se tornaram claramente imateriais, alterando, assim, a dinâmica de uma prova.
Estamos falando de um processo consolidado de 'imaterialização', portanto, dos autódromos em geral, que, nos GPs da Itália, devido ao peso histórico, costuma se manifestar de forma mais evidente.
A NESPRESSALIZAÇÃO DO MUNDO
O mais importante a se notar é que a imaterialização não é um fenômeno exclusivo da Fórmula 1.
Alguém aqui se lembra de como usávamos a internet dez anos atrás? Internet discada, alguns minutos ao dia. Como era preciso buscar informações em livros, nossos dedos precisavam do contato com o papel para que a gente pudesse obter conhecimento. Hoje, o Gooogle nos dá mais e melhor do que qualquer enciclopédia. Em uma tela completamente virtual.
Há três, vinte, trinta anos, se quiséssemos tomar um café em casa, se fazia necessário abrir a embalagem com o pó (o que costumava soltar um cheiro agradabilíssimo), esquentar a água, dobrar um pedaço de papel, controlar o fluxo da água fervente... enfim, havia muitas 'coisas' ao redor.
De algum tempo pra cá, as classes mais abastadas têm aderido a uma certa máquina chamada Nespresso, que, além de exorbitantemente cara, nos priva do contato com todos esses odores, sons e temperaturas que precediam o primeiro gole. É só enfiar um pote lacrado num buraco e esperar um pouco.
Enfim, o café se tornou algo muito mais imaterial. E não só o café: o mundo está se tornando mais "nespressalizado", ou seja, mais imaterial: o que antes eram funções físicas agora se tornam funções dedutivas.
Nesse contexto é que devemos entender a transformação das chicanes de Monza. O automobilismo é um fenômeno cultural e só pode funcionar se estiver articulado com o mundo à sua volta. Hulkenberg só cortou as chicanes impune, no último fim de semana, porque nós, como sociedade, temos aceitado trocar nossa experiência material-sensorial por um mundo entupido de não-coisas.
Este post foi baseado nas ideias e teorias de Vilém Flusser (1920-1991). Quem quiser enternder mais de Fórmula 1 e automobilismo não se arrependerá de ler "A Filosofia da Caixa Preta" e "O Mundo Codificado".
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