Sunday, September 5, 2010

A morte como detalhe

Um acidente em uma corrida de automóvel pode gerar imagens impressionantes. Mais impressionante ainda é ver, na maior parte dos casos, os bravos pilotos saindo ilesos daquele amontoado informe de sucata. Hoje, essa é a regra - cada acidente espetaculoso se parece menos com um evento de corrida e mais com um show de ilusionismo, do qual as pessoas esperam justamente o impossível.

Quarenta anos atrás, não era assim: óbitos se sucediam com impressionante regularidade. De poucos acidentes se esperava que a pessoa por trás do capacete pudesse sair com suas próprias pernas.

Ainda assim, imagens impressionantes destes tristes eventos foram legados à posteridade. O que vitimou Jochen Rindt, em 5 de setembro de 1970, não constitui exceção: os destroços da Lotus guinchados até os boxes, o vídeo do carro rodopiando até escapar da Parabolica, o corpo já coberto sendo retirado da pista, morto.

Mas nenhuma imagem do acidente em si talvez deixe sensação tão estranha, incongruente, quanto esta acima, de Jacky Ickx, no dia seguinte ao falecimento do colega.

Walter Benjamin dizia que, com a invenção da fotografia, o inconsciente das pessoas se tornaria aparente. Mas o que é possível depreender de alguém a partir de uma imagem? O que estaria se passando na cabeça de Ickx naquele momento, sentado no guard rail, à beira da reta dos boxes, poucos minutos antes da largada? Ele corria pela Ferrari, estava na pole, em Monza... Era o quarto no campeonato, 26 pontos atrás do líder, cujo cadáver jazia insepulto em algum necrotério não longe dali.

Seria mesmo tão importante assim uma vitória ou um campeonato mundial? Mesmo tendo que enterrar velhos companheiros de pista na terça-feira seguinte? Será que um troféu de vencedor ainda traria algum resquício de satisfação que compensasse o risco?

A julgar pela expressão serena e compenetrada do piloto nesta foto, a resposta não poderia ser mais clara: sim.

Ickx, e provavelmente o resto do grid, neste momento estava pensando em como fazer para manter o pé cravado no acelerador mais tempo que os adversários. Em cortar melhor as retas, em negociar melhor as curvas; a morte, banal, súbita, talvez fosse apenas um detalhe.

Crédito da foto: Rainer Schlegelmilch

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